“A pobreza aqui é passada de pai para filho, assim como a necessidade de se trabalhar dia e noite para comprar um saco de arroz, um saco de feijão. Mas é com amor e carinho que criamos nossos filhos, sem nos darmos conta do local, dos amigos incertos e das coisas que injetam aqui – armas e drogas.”
Ainda que diferentes, as periferias são muito parecidas. Distantes geograficamente, mas com dilemas, dores, alegrias e dúvidas semelhantes, possuem identidades únicas, particulares, mas comungam dos mesmos fatores sociais. Seja aqui em Petrópolis, seja na capital de São Paulo, seja em Belo Horizonte ou Salvador, muitas histórias se assemelham. Capão Pecado é uma dessas tantas histórias, com a identidade e a voz paulistana, mas que não surpreenderia se acontecesse nas periferias e subúrbios do Brasil e da América Latina.
Publicado originalmente em 2000, Capão Pecado é um dos marcos da chamada literatura marginal. Com grande talento narrativo, Ferréz traz a história de Rael, um adolescente morador do Capão Redondo, que só quer conseguir um bom emprego ou uma ocupação que permita a mudança de vida. No meio do caminho, acaba se apaixonando pela namorada de um de seus principais amigos. Acompanhamos, então a saga de Rael para lidar com seus próprios sentimentos e com as consequências de suas ações.
O que torna esse livro tão impactante não é seu enredo principal, mas tudo que está ao redor, tudo que constrói o cenário de cada página. É a realidade e a verdade, que estão ali como o que são, sem filtros coloridos ou recortes do Instagram.
São os amigos que se perdem para as drogas ou para o tráfico. A violência que é parte da rotina, a dificuldade do transporte público, de jovens periféricos conseguirem emprego, a desigualdade social, a falta de assistência do Estado para famílias que precisam. Choca quem nunca viveu ali, quem nunca viu, dia após dia, ano após ano, gente que luta para crescer e para ter direito a sonhar.
A evolução de Rael enquanto personagem funciona quase como uma Jornada do Herói às avessas, como um tapa na cara dado pela realidade, uma mostra dentre tantas de que o destino pode ser cruel se você já nasce no seio da desigualdade. Um final doloroso, mas escrito de forma impecável, direta e sem floreios, como a vida.
Analisando Capão Pecado agora, alguns meses depois de ter terminado e logo após o fim das eleições municipais, dá pra ver com um pouco mais de clareza como a esquerda “se desconectou da base”, mas tem perdido no discurso e controle narrativo porque não entende que o povo das comunidades, do subúrbio, quer, acima de tudo, vencer. Mas isso é papo pra outro texto, em outro momento.
Terminei Capão Pecado rememorando minhas próprias lembranças e experiências, conseguindo visualizar com certa clareza todos os quadros pintados em cada página. Feliz por ter vivido o que vivi, mais ainda por conseguir enxergar, hoje, com outra ótica. Um livro essencial para quem quer conhecer muito do que somos enquanto sociedade e nação e pra quem quer ler uma ficção que mostra como, na realidade, o destino nem sempre é favorável.
O que estou lendo agora:
Sigo na busca de voltar ao ritmo de antes, então emendei no best seller “O caçador de pipas” de Khaled Hosseini que muitos já leram, mas eu ainda não tinha tido contato. Estou bem no começo e dá pra ver como a leitura fluí bem. Comprei esse livro para ter um pouco mais de contato com a cultura e a história do Afeganistão para além das guerras, ainda que elas inevitavelmente façam parte da história do país.
Um retorno:
Fiquei completamente afastado desse espaço por total falta de tempo devido ao processo eleitoral. Agora as coisas estão voltando lentamente ao lugar e vou diminuindo a fila de resenhas aos poucos, além de em breve voltar aqui com outros textos. Obrigado a você que continua por aqui. :)
Próximas resenhas:
Kazuo Ishiguro - Não me abandone jamais
Philip Kotler - Marketing 5.0
Paul Auster - Homem no Escuro
Michel Laub – Solução de dois estados