Resenha: Bolsonarismo - João Cezar de Castro Rocha
Combater o bom combate, guardar a democracia
“A retórica do ódio, além de uma iníqua pedagogia de desumanização do outro, é um modelo exitoso de negócio, uma forma de conquistar visibilidade num mercado de disputa feroz pelo mínimo da atenção alheia.”
Entender o bolsonarismo e a ascensão da extrema-direita no Brasil. Talvez você não tenha mais a menor paciência para esse assunto. Talvez você só se sinta aliviado por não viver mais sob o regime do ódio e da ignorância e agora não queira mais ouvir falar nisso tudo. Eu entendo, de verdade. Talvez, nunca tenhamos passado por algo tão assustadoramente bizarro como os anos de governo de Jair Bolsonaro e sua influência na sociedade como um todo.
Na minha própria necessidade de entender as coisas, essa dissonância cognitiva coletiva massiva que vivemos ocupa um espaço importante. Por que vivemos isso? Por que isso tudo ainda está tão impregnado em nossa sociedade? Busco explicações políticas, mas também sociológicas e psicológicas para tudo isso. O livro do professor João Cezar de Castro Rocha foi mais uma peça que me ajudou no processo de compreensão.
Publicado em 2023, “Bolsonarismo – Da Guerra cultural ao terrorismo doméstico” reúne artigos, entrevistas do autor e textos inéditos que se complementam para auxiliar o nosso entendimento de situações profundas que levaram aos resultados que tivemos.
Com um humor irônico e uma sagacidade textual incrível, o professor João Cezar de Castro Rocha entrega textos bem fundamentados, fluídos e que vão mostrando, ponto a ponto, como chegamos a um ponto crucial de virada, com parte considerável de nossa sociedade mergulhada em fake news, incompreensão de conceitos básicos, criação de realidades paralelas e uma insuportável impossibilidade de diálogos.
Mais do que o papel das redes sociais no processo, o que vemos era um país que estava pronto para abraçar os ideais fascistas e extremistas, em uma sanha punitiva e uma caça constante de vilões para a própria miséria. Até que ponto o que é extraído das pessoas pelos movimentos de extrema-direita é, realmente, o que elas são? O quanto não houve uma estrutura que veio, de forma obscura, permitindo que as pessoas acreditassem realmente em tudo que acreditam.
Para quem está “do outro lado” ou que pelo menos manteve a racionalidade de olhar para tudo isso e discordar, foi ainda mais difícil. Estressante, doloroso e tantas outras palavras que podem ser somadas a olhar para alguém que você ama e ver uma mente completamente lavada, controlada por processos que ela não consegue enxergar e que, mesmo conseguindo, não acreditaria na existência.
Esse livro acende um alerta importante: Não acabou. O bolsonarismo e a extrema-direita, em todas as suas variações, não foi derrotado completamente em 2022. Precisamos não só entender seu funcionamento, mas desenvolver ferramentas realmente eficientes para exterminá-lo. Não existe tolerância possível com quem, por trás da manipulação de uma dissonância cognitiva, luta por um golpe de Estado.
A questão, também, é que nas ruas essa percepção pode ser muito diferente da internet. Por maiores que sejam os problemas envolvendo as redes sociais, por exemplo, ainda existe uma vida fora delas, um mundo onde as pessoas talvez estejam mais preocupadas com o seu dia de amanhã do que com um ministro do STF. A falta de consciência política e compreensão do próprio meio de grande parte da população é um terreno fértil para ideias escusas, mas não é um fator determinante para taxar o tio do açougue de fascista.
Ler artigos de 2018 em diante trouxe à tona memórias desagradáveis, mas que não devem ser omitidas. Dos escândalos de corrupção, passando por um secretário de cultura abertamente nazista, vivemos a maior pandemia dos últimos 100 anos sob o regime de alguém que negava a ciência e pouco se importava com a vida dos brasileiros. O terrorismo doméstico que vivenciamos levou a vida de mais de 700 mil brasileiros (em números oficiais).
Não podemos esquecer, não podemos normalizar, mas acima de tudo, precisamos enxergar, de forma clara e objetiva, quais caminhos podemos seguir. Entender o bolsonarismo como uma doença social, dessas que rasga o tecido do convívio humano em sociedade, mas buscar uma cura efetiva e uma vacina racional, que permita que as pessoas possam pensar com clareza e respeito.
Eu entendo que você não queira mais falar sobre isso. A verdade é que nem eu mesmo gostaria de ter vivido o que vivemos e de ainda saber que esse pensamento destrutivo, pautado em uma ignorância absurda, na violência, no ódio e na boçalidade está aí, em cada curva, em cada esquina, adormecido dentro de muitos e ainda acordado dentro de outros tantos. Como mudar isso? Teremos tempo? Será possível curar nossa sociedade da doença do ódio e da ignorância? É difícil saber, mas sigo tentando conhecer e compreender.
O que estou lendo agora:
Ando com pouquíssimo tempo, infelizmente (já justificando o sumiço das últimas semanas), o que tem impactado diretamente no meu ritmo de leitura. Sigo nesse livro do Galeano e tenho gostado bastante, mas não tenho conseguido ler mais do que 30 páginas por dia, então creio continuar nele até o final do mês. É muito interessante como o uruguaio consegue fazer as conexões entre toda a América Latina e os efeitos do colonialismo, do genocídio e da escravidão. Reflexos que de fato o tornam atual, mesmo o livro tendo sido escrito na década de 70.
Próximas resenhas:
Ferréz - Capão Pecado
Kazuo Ishiguro - Não me abandone jamais
Philip Kotler - Marketing 5.0
Paul Auster - Homem no Escuro