Resenha: As veias abertas da América Latina - Eduardo Galeano
Para onde vamos, América Latina?
“Segundo a voz de quem manda, os países do sul do mundo devem acreditar na liberdade de comércio (embora não exista), em honrar a dívida (embora seja desonrosa), em atrair investimentos (embora sejam indignos) e em entrar no mundo (embora pela porta de serviço).”
Um país de dimensões continentais e de história tão recente quanto o nosso pode ter certa dificuldade na formação de uma chamada “identidade nacional”, símbolos fortes que todos nós enxergamos e nos vemos sob a tutela. O “ser brasileiro” reúne uma miscelânea de sabores, trajetórias, cores, músicas e rostos. Ainda assim, somos. E, para além disso, somos também latinos, mesmo que essa identidade tão importante nunca tenha sido validada e potencializada na sociedade brasileira.
Quando nos enxergamos enquanto latinos permitimos uma abertura de percepção única. Entender que nós, latino-americanos, somos, também, fruto de séculos de exploração, violência e desigualdade social programada é uma chave para entender o mundo que nos cerca. Não existe coincidência quando os genocídios de povos originários serem parecidos aqui e nos outros países da América Latina. Não é por acaso que as ditaduras militares em países como Peru, Chile, Argentina e Brasil tenham acontecido em períodos próximos e nos mesmos formatos.
É quando olhamos para o mundo de hoje, com a volta de Trump para a presidência dos EUA e os movimentos de extrema-direita no Brasi em êxtase, que podemos perceber as engrenagens plantadas por séculos vindo à tona e direcionando o ódio das classes mais baixas para si mesmo. Pobre odiando pobre e trabalhando por um sonho americano de se tornar milionário, dormindo nos devaneios de uma meritocracia inexistente.
Publicado em 1971, “As veias abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, faz uma radiografia dos efeitos brutais do colonialismo e do capitalismo na história da América Latina, seus efeitos e suas estruturas mantenedoras, que estimulam a desigualdade, a fome e a pobreza. Com exemplos históricos de como os impérios que colonizaram (e ainda colonizam indiretamente) a região, Galeano vai revelando o show de horrores, crueldade e sangue que fundamentou a formação da região.
Impérios e grandes conglomerados de empresas, que exploraram e, em alguns casos, ainda exploram terras, riquezas e povos, são elencados e apresentados como agentes da desintegração e da inibição do crescimento das nações e do combate à pobreza.
Sempre ouvi que esse era um livro necessário para ser lido por quem quer entender a história da América Latina. De fato, com uma escrita por vezes crua, mas que não perde o talento e a arte das palavras, Galeano escancara as portas da percepção sobre quem somos e contra quem realmente devemos nos levantar.
O livro perde pra mim apenas por efeitos do anacronismo inevitável de quem, em 1971, levantou dados econômicos e de produção da região. Com a defasagem desses dados de quase 25 anos a leitura acaba ficando travada e sem sentido para quem lê em 2025. Ainda assim, “As veias abertas” cumpre um papel importante para a compreensão de nossas feridas históricas.
Em tempos da tragédia humanitária que vivemos, com crises de imigrantes em diversos países da região, as ameaças de expulsão dos que vivem nos EUA, o ódio crescente às minorias, a total falta de assimilação de classe na população mais pobre, em conjunto com os efeitos nocivos das redes sociais em uma sociedade não preparada, a obra de Galeano ainda é importante e segue acendendo luzes de alerta sobre como continuamos a repetir e alimentar nossas próprias tragédias.
Ficam as questões: Para onde vamos? Por quanto tempo seguiremos esses caminhos de destruição, subjugados por nações imperialistas. Ainda que impérios caiam, quando teremos realmente a liberdade de sermos o que verdadeiramente podemos ser? Por quais caminhos mais nosso sangue precisará escorrer?
O que estou lendo:
Resolvi conhecer o texto de Stefan Zweig por sua ficção e não poderia ter feito uma escolha melhor. Que forma de escrever encantadora e bela. Tinha tudo para ser pedante, mas de maneira surpreendente, não é. Cada parágrafo parece ter sido escrito com uma atenção poética, com carinho na escolha das palavras. As novelas até agora tem me surpreendido, mesmo em temas que poderiam ser vagos ou banais.
Próximas resenhas:
Walter M Miller Jr. – Um cântico para Leibowitz
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A sexta extinção - Elizabeth Kolbert
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