Resenha: Sargento Getúlio - João Ubaldo Ribeiro
Ou: Porque João Ubaldo Ribeiro era um gênio da literatura brasileira.
“Tem quem diga que a morte é calma. Tem quem diga que dá até paz, como num descanso. Só se for depois, porque na hora o sofrente arregala as vistas e se segura no que achar, como quem se segura na vida.”
Entender a mente do outro por completo é impossível. Ninguém, nunca, vai conseguir estar atrás dos olhos e dentro da mente de outra pessoa de forma que seja possível entender essa mente plenamente. Uma das belezas da literatura é possibilitar, mesmo que parcialmente, essa sensação impossível, de estar dentro da mente de um personagem e enxergar o mundo pelos seus olhos.
Publicado em 1971 e vencedor do Jabuti de Autor Revelação do ano seguinte, “Sargento Getúlio” foi um marco na obra de João Ubaldo Ribeiro. Aqui, acompanhamos o policial Getúlio Santos Bezerra que, quase no final da carreira, recebe a missão de levar um prisioneiro político de Paulo Afonso até Aracaju, por ordens do Coronel Acrísio, seu chefe político direto e, de forma subentendida, figura clássica do coronelismo.
Acompanhado do motorista Amaro, Getúlio assume o compromisso como um cumpridor da justiça e da lei, homem executor, que cumpre suas missões e trabalha para limpar o mundo de pessoas “ruins”, as bostas que infestam a nação. Ao longo do caminho, pelas estradas e paragens, Getúlio vai relembrando sua própria vida, seus causos e suas torturas encaradas como vitórias.
“Sargento Getúlio” representa como poucos uma síndrome presente até hoje, que infesta as polícias militares, as forças armadas, o judiciário, o legislativo e o executivo: A síndrome do pequeno poder. O homem medíocre, por vezes abaixo disso que, em uma função de poder sobre a população comum, se veste de ditador e dono do mundo, com ignorância e estupidez características.
Getúlio mostra como tudo isso coexiste, em um ser que vê na violência sua expressão de vida. É difícil se afeiçoar a ele, mesmo aceitar suas justificativas, sua sede de sangue, ainda que no fundo, lá no final, o Sargento só queira uma vida em paz. Uma linha do tempo de violência e de armas do Estado que avançou pela história do Brasil, deixando um rastro de morte e destruição, que reverbera até hoje nas nossas polícias militares.
A verdade é que esse é um livro “difícil” de ser lido e acho curioso quem diz o contrário. É muito claro que “Sargento Getúlio” foi feito pra ser mesmo um livro “difícil”, complexo, porque ele é a voz de um homem bronco, com pouca instrução, que vive suas complexidades dentro da simplicidade. Carregado de regionalismos, com uma linha narrativa e temporal pouco definida, diálogos que se somam e subtraem, é impossível para o leitor não se perder vez ou outra e ter dificuldades de entender o que está acontecendo, já que temos apenas a voz do próprio Getúlio guiando a história.
Ainda assim, é uma experiência interessante e muito válida. João Ubaldo sabia, mesmo nesse caleidoscópio de pensamentos, incluir passagens fortes, engraçadas e carregadas de simbolismo político. Conseguimos enquanto leitores enxergar cicatrizes que Getúlio carrega e que mesmo ele não percebe. Violência, amores e uma construção bruta da vida que nós vemos “de fora” e até, de certa forma, ajuda a entender os resultados da história. Recomendo muito se você se interessa pela obra do autor (como é meu caso). “Sargento Getúlio” é um livro único, desses que só um gênio como João Ubaldo Ribeiro era capaz de produzir. Nada surpreendente vindo do homem que escreveria, anos depois, “Viva o Povo Brasileiro”.
No cinema:
O livro tem uma adaptação para o cinema muito fiel, feita e roteirizada pelo próprio João Ubaldo, que conta com uma atuação impecável de Lima Duarte como Sargento Getúlio. Com transcrições quase que completas dos diálogos e dos pensamentos do personagem principal, o filme deixa a obra mais completa, como fosse ali sua mídia final. Está disponível gratuitamente no Youtube: